13.3.07

A metade que nos falta


'Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão, é fácil. Mas namorado, mesmo, é muito difícil (...). Quem não tem namorado é quem não tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar'.
Carlos Drummond de Andrade


Parafraseando Oscar Wilde, eu diria: amar o outro é o começo de um idílio que dura a vida inteira.
Na atualidade, o amor passou a ser usado como objeto de fetiche, valorizado, idolatrado, desejado e requerido pela maioria de nós. É como se disséssemos em uníssono que “sem amor, estamos amputado da nossa melhor parte”, conforme a crítica formulada pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro “Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico”.

Segundo Jurandir Freire, o amor foi mais uma invenção da modernidade como tantas outras que hoje conhecemos, e apesar do prestígio que o amor tem em nossa sociedade, ele deixou de ser um puro momento de encanto para se tornar uma corvéia, pois 'quando é bom, não dura, e quando dura, já não encanta mais'.

Se pensarmos direito, ele tem razão: das revistas para adultos e adolescentes ao cinema e televisão, somos constantemente bombardeados com a necessidade insofismável de encontrarmos a nossa cara metade. Hoje, você não é ninguém e nem pode candidatar-se ao papel 'fundacional' em ser, se não tiver quem lhe complete, um companheiro ou uma companheira, e tudo isso é dito de forma voraz através de um imperativo categórico que tem levado as pessoas a certos níveis de depressão, ou porque não conseguem alcançar o desejo da maioria, daí achando-se 'incompetentes' para amar, ou por não suportar a dor de ter perdido alguém que amou.

Ora, na contemporaneidade, as pessoas não querem tanto compromisso afetivo como outrora. Não conseguimos olhar para alguém e ver nela um projeto de vida duradouro, uma história pautada na parceria amorosa, afetiva e no companheirismo, porque todos querem amar, mas temem investir neste projeto. Aliás, nem mais sabemos se com a perda dos grandes ideais e das grandes utopias, nos tornamos essencialmente narcísicos ou individualistas, já que o 'ficar' virou moda e substituiu o namoro cujo ethos amoroso era baseado em eros, na acepção grega do termo.

Na Grécia antiga, o amor era algo necessário à construção da cidadania, estava a serviço da 'pólis' (cidade grega) e destinado exclusivamente aos homens. O amor fazia parte da pederastia grega, que em nada se assemelha ao que hoje concebemos como 'homossexualidade'. Homossexualidade é a relação amorosa ou afetiva e sexual entre duas pessoas adultas do mesmo sexo que consentem partilhar essa experiência mútua de vida.

O amor entre os homens na Grécia antiga era acima de tudo uma medida pedagógica e visava alcançar o mundo de eros (o reino dos amores), seja através da contemplação do belo, seja através dos prazeres. Existiam, portanto, dois reinos: o reino dos prazeres, denominado de 'afrodisias', e o reino dos amores, denominado de eros. Nos 'afrodisias', os prazeres sensuais ou físicos estavam na contemplação de prazeres da vida diária, tais como beber, comer, fazer ginástica, cantar a natureza etc.

No reino dos amores, eros era encontrado não só entre homens, mas entre deuses e deuses, deuses e homens, deuses e animais, animais e seres humanos, elementos da natureza e humanos, fabricando condutas diversas e diferentes das que temos hoje. Nesse sentido, o amor entre os homens era uma forma de culto ao próprio eros, como uma entre tantas das obrigações inerentes ao cidadão grego.

Contrariamente ao homoerotismo masculino, cuja relação sexual pode estar pautada em uma atividade e passividade, na Grécia antiga, o homem grego adulto estava impedido pelas leis da pólis de submeter-se a qualquer papel passivo na relação sexual. A prática de “cunilingus” (sexo oral) para com uma mulher era, igualmente, condenável e reprovável na cultura grega.

Não obstante, foram os próprios gregos que inventaram a metáfora da complementaridade, através do famoso mito de Aristófanes, no célebre livro 'O Banquete', de Platão.

Segundo Aristófanes, a origem do amor remonta o mito dos seres andrógenos e completos. Na antiguidade, os seres humanos eram essencialmente duplos e esféricos, constituídos de duas metades: o primeiro era constituído de duas metades homem, o segundo de duas metades mulher e o terceiro era constituído de metade homem e metade mulher. Certo dia, esses seres resolveram desafiar os deuses, e tiveram como castigo, a divisão de cada uma de suas partes, sendo condenados a vagarem errantes pelo mundo. O amor seria a tentativa de cada uma dessas metades retomarem a unidade perdida. Por isso, na cultura popular, dizemos que o amor não tem sexo, pois cada um de nós teve a sua cara metade um dia perdida em algum lugar, segundo o mito grego (o que explicaria, grosso modo, a existência de seres heterossexuais, homossexuais e bissexuais como constitutivas de nossas subjetividades).

Mas essa concepção mudou ao longo da história.
Na época do cristianismo, o amor passa a ser uma aberração e um desvio após os ensinamentos e doutrinas de Santo Agostinho. Ele dizia que o amor deveria ser destinado única e exclusivamente a Deus. O amor, e conseqüentemente o sexo, era uma forma de corromper o pacto feito entre Deus e o homem. A idéia de pecado vem desta época e perdura até os nossos dias. O pecador, por conseguinte, é o primeiro personagem sexual da história da humanidade.

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