15.6.07



Eu sei, mas não devia...

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ver outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora, a tomar o café correndo porque está atrasado, a ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viajem, a comer sanduíche porque não dá para almoçar, a sair do trabalho porque já é noite, a cochilar no ônibus porque está cansado, a deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre guerra. E aceita a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos, e que haja número para os mortos. E, aceitando os números, aceita e não acredita nas negociações de paz. Não aceitando as negociações de paz, aceita ler todos os dias da guerra, dos números e da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo que se deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir comercias. A ir ao cinema e engolir publicamente. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro, à luz artificial de ligeiro tremor, ao choque que os olhos levam à luz natural, às bactérias da água potável, à contaminação de água do mar, à morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ouvir o galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila, torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e suja o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. Se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem o sono atrasado.

A gente se acostuma a não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma, para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que
gasta de tanto acostumar. Se perde em si mesma.


Marina Colasanti

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